Desde que escreveu seu livro Rule and ruin (Governar e arruinar, sem tradução para o português), em 2011, o historiador, sociólogo e consultor do Partido Republicano Geoffrey Kabaservice alertava para o perigo da ascensão dos radicais e a paulatina diminuição da influência dos republicanos moderados. O resultado do processo, segundo ele, é a cada vez mais próxima confirmação de Donald Trump, grande vitorioso das primárias disputadas na “Super Terça” da semana passada e arrebatando vitórias importantes em Michigan, Havaí e Mississippi na terça-feira (9), como candidato à Presidência dos Estados Unidos. “Há muitos elementos na cultura conservadora contra a hierarquia, contra a tradição, contra as instituições. Trump se aproveita disso”, diz Kabaservice. “Trump é uma ameaça para o sistema político americano, porque é sua antítese. Ele fere a noção de freios e contrapesos da República.”
ÉPOCA – Como Donald Trump chegou tão longe?
Geoffrey Kabaservice – Essa pergunta tem a resposta embutida. Por Trump ser um candidato tão pouco plausível, ninguém o levou a sério. Por ninguém ter levado Trump a sério, ele chegou tão longe. Nenhum republicano tinha uma estratégia para combatê-lo. De US$ 400 milhões gastos com propagandas nas primárias, apenas 4% foram gastos com anúncios anti-Trump. O erro da cúpula do Partido Republicano foi não fazer o que Ronald Reagan fez: conciliar conservadores radicais e moderados. Eles não tentaram preservar espaço para os moderados. Donald Trump está se aproveitando do que já existia. Ele não tornou as pessoas cínicas em relação ao governo. Elas já eram cínicas. Só estavam esperando pelo salvador da pátria. Trump se embalou como um.
ÉPOCA – Por que os americanos querem um salvador?
Kabaservice – Há muitos elementos na cultura conservadora contra a hierarquia, contra a tradição, contra as instituições. Trump se aproveita disso. Também está se aproveitando do alvorecer de um sentimento antipolítico muito forte, surgido dos tempos difíceis que a classe média americana enfrenta desde 2008. A crise financeira fez a maioria da classe média perder dinheiro ou suas casas. As pessoas viram isso como resultado de manobras e artimanhas de Wall Street. Viram os responsáveis pela crise – grandes executivos e banqueiros – ser socorridos por Washington e sair impunes. As pesquisas mostram que as duas únicas instituições em que os americanos confiam são as Forças Armadas e a polícia. A menos confiável é o Congresso – atrás de vendedores de carros.
ÉPOCA – É a raiva que faz as pessoas votarem em Trump?
Kabaservice – Esta é a eleição da raiva, sem dúvida. Há alguns ideais muito enraizados nos Estados Unidos que passam de geração para geração. O principal é o sonho americano. Hoje, as pessoas perderam a perspectiva de viver o sonho americano. As pessoas que mais aproveitaram desse sonho, dos anos 1950 até os anos 2000, foram justamente as que mais sofreram com a crise: a classe média operária, principalmente os brancos. Há um sentimento real, genuíno, de temor com a perda de empregos, de casas e de dinheiro. São 90 milhões de americanos que não reconhecem mais o país onde vivem. Há um medo econômico, mas também de perder a identidade cultural. É por isso que a imigração se tornou uma questão intolerável para essas pessoas. Elas sentem que estão perdendo os postos privilegiados que um dia tiveram. Mesmo as estrelas da economia de tecnologia americana causam revolta entre essa classe média branca operária. Elas se sentem traídas, porque a era de ouro foi embora e os políticos não se enfileiraram para defendê-las. Perderam a fé nas instituições políticas americanas e nos dois partidos e elegeram a China e os imigrantes como bode expiatório. Eis o ambiente perfeito para o discurso de ódio de Trump.
ÉPOCA – Quais os riscos do discurso de Trump?
Kabaservice – Trump não é o candidato mais conservador na disputa. Ted Cruz é esse candidato: oriundo das bases do Tea Party, ultrarreligioso, a favor do Estado mínimo. Em alguns aspectos, Trump é heterodoxo e toma posições que um republicano típico não tomaria. Ele promete reduzir impostos para a classe média e criar pacotes de estímulo econômico para trazer de volta empresas para o país. Trump não é um republicano, é um populista. E sua retórica é semelhante à de um caudilho, no tom, na postura, na ausência de detalhes sobre propostas, na crença de que só ter uma pessoa forte no comando do governo resolverá tudo. Trump é uma ameaça para todo o sistema político americano, porque é sua antítese. Ele fere a noção de freios e contrapesos da República.
ÉPOCA – É impossível parar Trump?
Kabaservice – Nas primárias, não me parece possível pará-lo. Ele tem um número significativo de delegados. Ainda há competição, mas é improvável que ele perca. Na eleição nacional, num embate de Trump com Hillary, será diferente. Hillary tem apoio incondicional do partido. Mesmo apoiadores de (Bernie) Sanders vão votar em Hillary na eleição geral. Trump, ao contrário, não vem de nenhuma das facções do Partido Republicano. A cúpula republicana tem medo dele, e até os conservadores não gostam dele. Robert Kagan (um ideólogo do Partido Republicano) chegou a dizer que vai apoiar Hillary se Trump for nomeado. Por outro lado, os Estados Unidos nunca viram nada como Trump em sua história. Ele é um fenômeno inédito. Há tantas pessoas com ódio do establishment, de instituições tradicionais, do jeito tradicional de fazer política, que não se sabe ao certo qual o peso que isso terá nas eleições. Muitos podem decidir votar em Trump porque ele está decidido a implodir Washington – e muitos americanos querem isso.
ÉPOCA – Em seu livro, o senhor narra a guerra civil entre moderados e radicais no Partido Republicano. Essa guerra respinga na eleição atual?
Kabaservice – Sim, sem dúvida. Há muitos moderados que restaram no Partido Republicano. Temos hoje uma larga parcela de políticos que não se declaram moderados, mas acreditam que o melhor caminho para os republicanos é governar, dialogar e não impedir os outros de governar. Não é o caso de Ted Cruz nem de Donald Trump. Na maior parte da história do partido, houve uma luta entre as facções moderada e conservadora. E os radicais sempre acreditaram que tinham de implodir o governo. Nunca estiveram tão perto disso como agora.
ÉPOCA – É possível comparar o momento atual com 1964, quando o ultraconservador Barry Goldwater foi nomeado candidato republicano, desafiou a cúpula do partido e refundou o conservadorismo americano?
Kabaservice – O que preocupa a cúpula do Partido Republicano e seus principais líderes é que a nomeação de Donald Trump repita aquela dramática convenção partidária em que Goldwater conseguiu a nomeação, em 1964. Goldwater tinha apoio de diversos conservadores fanáticos, apaixonados por suas propostas em plena efervescência das guerras culturais americanas, por ele incorporar sentimentos religiosos e de raça que eles acreditavam ser a base republicana. Mas, na eleição geral, ele não tinha apelo. Quando perdeu para Lyndon Johnson de forma avassaladora na eleição nacional, ele levou para o buraco o partido. Os republicanos perderam vários senadores, governadores e centenas de legisladores locais. Por anos, o Partido Republicano ficou obscurecido. As pessoas esquecem, mas o Partido Republicano era o partido dos negros até os anos 1960, o partido de Lincoln. Ao contrário da maioria de seus colegas republicanos, Goldwater votou contra a Lei de Direitos Civis para os negros de 1964. Ao se tornar candidato a presidente pelos republicanos, Goldwater rompeu o laço do partido com os negros. Com a mudança demográfica dos Estados Unidos, o aumento de hispânicos e a importância do voto deles, com mais de 13 milhões de eleitores, Trump pode ser para a relação dos latinos com os republicanos o que foi a de Goldwater com os negros em 1964.
ÉPOCA – No discurso de vitória depois da “Super Terça”, Trump prometeu diálogo e negociação. Ele dá sinais de que vai suavizar o discurso?
Kabaservice – Trump não é Ronald Reagan. Reagan uniu o partido, enquanto Trump o divide. Reagan fez o Partido Republicano expandir sua base de eleitores. A dúvida é se Trump é capaz de ampliar a base republicana como Reagan fez, atraindo votos até mesmo de democratas – a classe média branca operária que vota nos democratas. Acho que Trump não é forte o suficiente para isso. Mas ele é tão imprevisível que tudo pode acontecer. E suavizar o discurso é o primeiro passo para tentar ser um candidato com apelo nacional. Talvez esse seja o melhor caminho para derrotar Hillary. O problema é que a primeira impressão tende a ser duradoura. Muitas pessoas não vão conseguir superar a imagem que Trump passou nos primeiros seis meses de campanha: a de um racista nacionalista, com tendências autoritárias. Além disso, muitos de seus eleitores parecem ser monotemáticos: anti-imigração. Será difícil para ele mudar de ideia e tirar essa questão da imigração de seu discurso. Por maior que seja a habilidade de Trump em se reinventar, descolar-se da imagem inicial que ele criou será impossível.
Fonte: Época