Aprovada em terceira chamada para odontologia na Universidade Federal de Goiás (UFG) por meio do sistema de cotas, a estudante Aline Fernandes Vieira, de 21 anos, viu o sonho de cursar uma faculdade pública se transformar em pesadelo após ser barrada por uma comissão que não a considerou parda, mas morena. A jovem discordou da decisão e recorreu à Justiça Federal, alegando que nunca se considerou branca e que documentos e fotografias de sua família comprovam a ascendência negra. O mandado de segurança foi negado em caráter liminar (provisório).
Aline chegou a recorrer da decisão da Comissão de Verificação de Autodeclaração da UFG e passou por uma segunda análise, mas mesmo assim teve a inscrição no curso indeferida. Ela foi aprovada com base nas notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2017.
“A comissão não me fala nada. Me analisam, por cerca de um minuto e o resultado só sai depois. […] [Contei que] me descobri assim [parda] no meu meio social. Na escola, percebi que existia uma diferença entre mim e as outras criança brancas, até vivi situações de bullying. Na família era chamada de moreninha e pretinha com naturalidade. Cresci tendo consciência que eu sou parda e não branca”, afirmou a jovem.
Ela entrou, então, com um mandado de segurança na Justiça Federal, alegando que foi rejeitada após ser avaliada por pessoas que apenas questionaram se ela já tinha sido discriminada em razão de sua cor. No pedido, a defesa dela alegou que a comissão não analisou os documentos e fotografias de sua família e que a interpretação que considera apenas aparência física depende da subjetividade do avaliador. Além disso, ressaltou que desde 2006 ela faz um tratamento de pele que exige restrição de tomar sol.
Com o pedido também negado em caráter liminar, no dia 23 de março deste ano, a estudante contou que se sentiu abalada. Para ela, a questão afeta mais do que o seu direito de ser aceita na universidade e entra em conflito com a sua autoimagem.
“Sempre tive essa consciência e ter isso negado desconstrói minha identidade. Eu me senti ofendida por não terem aceitado minha declaração e injustiçada porque outras pessoas com as mesas características e até mais claras do que eu foram aceitas. Não teve critério, foi muito subjetivo”.
“Se eu não sou parda, não tenho lugar. Nunca fui considerada branca e não sou uma pessoa negra. Essa é minha identidade: eu sou parda”, declarou Aline.
A jovem disse ainda que a recusa da UFG em aceitá-la também causou gastos inesperados. Ela conta que está pagando cursinho e sente que perdeu tempo de estudo.
“Tive que voltar para o cursinho. Não estava preparada. Perdi tempo, dinheiro e estou com o psicológico abalado. Estou gastando em torno de R$ 1,5 mil por mês com específicas e as aulas”, contou.
Parecer do Ministério Público Federal
O juiz Euler de Almeida Silva Júnior, além de negar o mandado de segurança em caráter liminar, também pediu um parecer do Ministério Público Federal.
Responsável pelo documento, a procuradora da República Mariane Guimarães de Mello Oliveira também foi contrária ao pedido da jovem. Ela explicou que “prestigiar” o subjetivismo nas autodeclarações dos candidatos podem, em última análise, prejudicar a política afirmativa de cotas nas universidades públicas.
“A condição necessária para concorrer às vagas reservadas aos cotistas é o enquadramento do candidato como pessoa negra ou parda, a partir da identificação por fenótipos de aferição visual, ou seja, por análise da manifestação visível da constituição genética do indivíduo (ou sua aparência), não sendo suficiente, apenas, sua autodeclaração”.
Andamento do processo
O parecer foi dado no último dia 16. Agora, segundo a assessoria de imprensa, o juiz deve dar uma sentença sobre o caso baseado nas provas e pareceres. Ainda não há data para a decisão. Depois disso, caso queiram, as partes ainda podem recorrer.
Em nota, o Ministério da Educação informou que fiscaliza apenas o cumprimento do quantitativo de vagas oferecido pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e que as universidades têm autonomia para proceder ou não com a matrícula dos alunos.
A pasta disse ainda que a fiscalização e acompanhamento é feito dentro das próprias universidades, que são autônomas. “Qualquer descumprimento deve ser questionado ao Ministério Público e à Justiça, assim como ocorre com qualquer lei”, disse no comunicado.
omissão de Verificação
O presidente da Comissão de Verificação de Autodeclarão, Pedro Cruz, explicou que o grupo foi instituído em 2016 para evitar fraudes no sistema de cotas. Antes, apenas a declaração dos estudantes bastava. Assim, além da declaração do candidato como pardo ou negro, os membros analisam o fenótipo do candidato, como cor de pele e características físicas.
No primeiro ano, eram analisadas apenas as denúncias recebidas pela universidade. Porém, em 2017, a comissão passou a atuar no momento da matrícula.
“Nesse processo, não são validas questões genéticas ou laços familiares para validar a autodeclaração do candidato. O candidato que se julgar injustiçado pode recorrer a uma nova comissão, com pessoas diferentes da primeira, que farão uma nova análise”, relatou.
O presidente da comissão explicou ainda que é preciso que a decisão seja unânime entre os membros. Se houver dúvida entre um deles, o candidato é aprovado. O grupo é formado por cerca de 40 servidores técnico-administrativos efetivos e professores que pesquisam questões raciais no Brasil.
Eles são divididos em comissões de três membros, cada, que analisam presencialmente os alunos, identificando se os candidatos têm ou não as características físicas da população negra e parda.
“Não dá para lembrar de casos específicos, mas se essa estudante não foi aprovada nas duas comissões, certamente o entendimento foi que ela não apresentava as características fenotípicas que a caracterizariam como parda”, completou.
Ações afirmativas
A UFG tem programas de cotas desde 2008. Inicialmente, ele era voltado para a comunidade negra, indígena e quilombola. O critério era a autodeclaração dos estudantes ou uma declaração feita pela comunidade na qual ele vivia, seja indígena ou quilombola.
Em 2012, com a Lei de Cotas, a instituição passou a destinar 50% de suas vagas para estudantes de escolas públicas, negros, pardos, indígenas e deficientes.
“Nessa época ainda não existia a comissão, considerávamos só a autodeclaração. Porém, com o número de denúncias de fraudes, tivemos que criar essa comissão. No último ano, que foi o primeiro em que fizemos essa verificação no ato da matrícula, apenas 9% das matrículas foi indeferida”, disse a coordenadora de Ação Afirmativas da UFG, Marlini Dorneles de Lima.
Fonte: G1