Após o tema ter relativamente se arrefecido, a polêmica de implantação de franquia de internet em banda larga fixa voltou a ganhar destaque nesta semana com a publicação do relatório da Ouvidoria da Anatel, que condenou a atuação da agência no caso. A prática foi também assunto de debate nesta sexta-feira, 19, na sede do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), envolvendo especialistas de áreas técnica e jurídica para abordar o assunto. O argumento apresentado é que não haveria justificativas técnicas para operadoras estabelecerem o limite dos dados, enquanto há no Marco Civil e na legislação de proteção ao consumidor pontos que proibiriam a prática.
“Tecnicamente, não há uma justificativa para que exista franquia de dados, os argumentos se baseiam muito em falácia, usando desconhecimento técnico das pessoas para tentar enfiar isso de alguma forma goela abaixo para a gente para que aceitem”, afirma a engenheira de computação e doutoranda pela USP, Nathalia Sautchuk. Ela alega que alguns dos problemas apresentados pelas operadoras, como a capacidade limitada, têm outras soluções, citando implantação de redes de entrega de conteúdo (CDNs) e participação em pontos de troca de tráfego (PTTs). Na opinião dela, o debate está “muito atrelado ao da neutralidade de rede”, uma vez que seria uma rentabilização alternativa, futuramente oferecendo serviços diferenciados por meio de zero-rating. “Talvez a franquia seja o bode na sala, mas a grande questão é a neutralidade.”
Há também o argumento da abordagem das teles, que alegam que precisam das franquias para justificar investimentos. “Não vejo a franquia ajudando na preservação de investimentos, o que mudaria é alterar o parâmetro de entrega: se tem máximo de 100 Mbps, mas um típico acesso de 10 Mbps está bom (para o consumidor), isso sim muda”, afirma o engenheiro de redes e instrutor da Escola de Governança da Internet, Rubens Kuhl. Ele acredita que o regulamento de qualidade tem meta “muito alta (velocidade de 80% na média e 40% na instantânea)”, o que gera expectativa irreal. “Criou-se reposta regulatória ao meu ver excessiva e gerou porta dos fundos que é a franquia. Tem diálogo que precisa ser refeito, inclusive de mudar o regulamento de qualidade.”
Para o engenheiro e criador do canal do YouTube “Eu faço a Internet Funcionar”, Thiago Ayub, a infraestrutura ótica conta com capacidade elevada o suficiente, mesmo considerando a última milha com cobre (FTTx em geral). Dessa forma, a deficiência seria na estratégia de implantação da rede. “Se há gargalo na última milha, então significa que vendeu mais capacidade do que tinha, foi overbooking”, alega. “Se não tem capacidade, não venda 200 Mbps, venda 2 Mbps”, exemplifica. Ainda na opinião de Ayub, há oligopólio das empresas de telecomunicações, o que acaba prejudicando o fornecimento de banda larga.
Visão jurídica
Os especialistas acreditam que o estabelecimento de franquias “só se explica por lógica de mercado, além de ser escassez artificial”, resume o advogado do Idec, Rafael Zanatta. Na visão dos debatedores, as operadoras estariam criando gargalos artificiais. “A atitude das operadoras de incluir ou reduzir franquias é (feita) sem qualquer impacto nos preços dos serviços – você limita o serviço, mas o preço continua o mesmo”, reclama a advogada e coordenadora do Intervozes, Veridiana Alimonti. “Isso incorre em série de abusos, estão elevando o preço indiretamente, porque o consumidor estará pagando preço de serviço que antes era ilimitado.” Ela argumenta que a falta de justificativa técnica para a existência da franquia já seria abusiva antes mesmo de se observar a questão contratual.
Alimonti lembra ainda que o próprio conceito de zero-rating só existe por conta da vinculação direta com o limite mensal de dados. “O fato de existir franquia como algo central leva a criar solução mágica de criar zero-rating, que só faz sentido nesse modelo de escassez artificial, de monetizar a falta de infraestrutura”, alerta. No entendimento da advogada, o próprio conceito fere a neutralidade de rede. Perguntada se o conceito de zero-rating se aplicaria ao de acesso patrocinado, ela foi enfática: “os efeitos na prática, tanto em termos técnicos de privilegiar pacotes em detrimento de outros, e criar problemas para os menores que não têm condições de cobrir o preço (pago às operadoras para patrocinar o acesso), na minha opinião, são os mesmos”.
A advogada do Procon-SP, Priscilla Widmann, acredita que “a saída seria a tributação dessas empresas (over-the-top) para investimento em banda”, e que o argumento das teles de que “quem usa menos paga por quem usa mais”, trazendo injustiça na precificação, não seria cabível. “A franquia na verdade vai excluir os mais pobres da Internet”, afirma. Widmann critica ainda o que chama de “fenômeno de surpresa (tu quoque)” na alteração unilateral dos contratos. “Pode até ocorrer alteração, mas tem de ser dialogada, respeitando consumidores e sem efeito surpresa”, diz.
Fonte: Exame