Os britânicos decidiram em referendo, por mais de 1,2 milhão de votos de diferença, deixar a União Europeia (UE). O resultado da consulta, divulgado na madrugada desta sexta-feira (24), empurra em uma profunda crise o bloco econômico e político criado após a 2ª Guerra Mundial.
De imediato, o mercado reagiu: a libra esterlina, moeda do Reino Unido, despencou e atingiu o menor valor frente ao dólar em 31 anos. As bolsas da Ásia fecharam em forte queda. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, que defendia a permanência no bloco, anunciou que deixará o cargo em outubro. Veja as principais questões que surgem neste momento:
É irreversível?
Oficialmente, o plebiscito não é “vinculante”, ou seja, ele não torna obrigatória a decisão de sair do bloco europeu. Mas, na prática, o governo dificilmente será capaz de contrariar a decisão da população. Os parlamentares favoráveis à permanência também podem tentar bloquear a saída do Reino Unido, mas analistas consideram que isso seria suicídio político.
Qual são os próximos passos?
O processo para encerrar 40 anos de união não é automático e se anuncia um divórcio difícil, porque tem de ser negociado com os outros 27 membros do bloco. É a primeira vez que isso acontece.
Segundo a Deutsche Welle, a Câmara Baixa do Parlamento britânico, onde a maioria é contra a Brexit, deve pedir ao premiê para apresentar aBruxelas a carta anunciando a saída do bloco.
A direita britânica, porém, não demostra pressa em agilizar esse processo. Embora os presidentes Comissão Europeia, do Conselho Europeu e Parlamento Europeu tenham pedido para que o Reino Unido inicie o processo de saída “o mais rápido possível”.
Durante a campanha, o premiê David Cameron, que deve deixar o cargo em outubro, explicou que o Reino Unido deve ativar a Cláusula 50 do Tratado de Lisboa, que desde 2009 funciona como uma espécie de Constituição Europeia, explicou a BBC. Uma vez que esse artigo é acionado não dá para voltar atrás.
Como será a batalha no parlamento britânico?
Segundo a BBC, a maioria dos 650 deputados federais britânicos é favorável à permanência do Reino Unido na UE. Ao menos 450 deles, de diversos partidos, articulam o lobby na tentativa de garantir a permanência britânica no mercado europeu – proposta polêmica e que deve enfrentar forte resistência dos outros países do bloco.
A manutenção desse elo, por outro lado, forçaria o Reino Unido a manter suas fronteiras com a UE abertas para trabalhadores europeus e continuar contribuindo para o orçamento do bloco – o que desagrada os partidários da Brexit.
Como serão as negociações com os outros países europeus?
A negociação com os outros países no Parlamento Europeu, que não tem data para começar, tem prazo máximo de dois anos, ainda segundo a BBC. Os outros países membros ainda precisam ratificar a saída para que seja formalizada. É válido destacar que Parlamento Europeu tem poder de veto sobre qualquer acordo que estabeleça as novas modalidades de relacionamento entre oReino Unido e a União Europeia.
A negociação é muito complexa, já que exige rescisão de tratados internacionais. Só com a União Europeia, há pelo menos 80 mil páginas de acordos. Por isso, após a negociação, é provável que exista uma fase de transição.
Qual será o impacto para os imigrantes que moram no Reino Unido?
O impacto na legislação interna britânica também será grande. Para começar, o Parlamento precisa derrubar os atos que dão primazia à lei europeia sobre a britânica.
Isso implica, entre outras decisões, estabelecer uma nova política migratória, uma das principais reinvindicações dos partidários da Brexit, que exigiam medidas mais restritivas.
Quem atualmente se beneficia das regras de livre circulação no bloco passará a se submeter às regras estabelecidas pela legislação nacional britânica, segundo a BBC.
Para quem já está no Reino Unido com visto gerido por essa legislação – com visto de trabalho, estudo ou cônjuges de britânicos – pouco deve mudar.
No ano passado, entraram no país 330 mil imigrantes, metade deles da União Europeia, que se favoreciam da livre circulação prevista pelo bloco. Cameron prometeu reduzir esse número para menos de 100 mil por ano e tem estado sob forte pressão por não conseguir cumprir essa promessa.
Durante a campanha, os proponentes da saída propuseram um sistema inspirado no modelo australiano. Nesse sistema, os imigrantes são aceitos em vagas disponíveis nas diferentes categorias de cotas, segundo a BBC.
Atualmente, o Reino Unido já possui um sistema baseado em categorias, que rege a entrada de estudantes, visitantes, trabalhadores qualificados e com pouca qualificação. Porém nem todas as categorias são preenchidas, porque o livre fluxo de cidadãos da UE naturalmente atende à demanda por imigrantes.
Setores que empregam mão de obra pouco qualificada, como construção civil, agricultura e limpeza, por exemplo, são tipicamente abastecidos com trabalhadores do Leste Europeu.
Imigrantes serão expulsos do Reino Unido?
Analistas e políticos ouvidos pela BBC dizem que a mudança será gradual e que ninguém terá de deixar o país da noite para o dia.
Atualmente, cerca de 3 milhões de cidadãos europeus vivem no Reino Unido, vindos principalmente da Polônia (850 mil), da República da Irlanda (330 mil) e de diversos países do antigo bloco soviético. Esses podem pedir a residência permanente no Reino Unido quando completarem cinco anos vivendo no país. Com a Brexit, o Certificado de Residência Permanente para Cidadão da UE, no entanto, deve deixar de valer.
A autorização para viver no Reino Unido indefinidamente (Indefinite Leave to Remain), que é regida pela legislação nacional, não deve ser modificada.
Nos dois casos, a cidadania só é obtida um ano depois do migrante mostrar o domínio da língua e ter conhecimento básico do funcionamento da sociedade britânica.
Qual é o impacto nos países do Reino Unido?
O placar final do referendo foi apertado 17.410.742 votos a favor da saída e 16.141.242 votos pela permanência – uma diferença de apenas 1,2 milhão de votos.
É preciso ficar atento também à disparidade dos votos entre os países que compõe o Reino Unido (Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales). A Escócia (66%) e Irlanda do Norte (56%), que votaram majoritariamente pela permanência, já discutem a possibilidade de se tornarem independentes do Reino Unido.
Na Escócia, o resultado impulsiona um novo debate sobre a independência. Em 2014, o país tinha decidido permanecer no Reino Unido. A chefe do governo regional escocês, Nicola Sturgeon, anunciou que deseja realizar um segundo plebiscito. “Como as coisas estão, a Escócia enfrenta a perspectiva de ser tirada da UE contra a sua vontade. Eu acho que isso é democraticamente inaceitável”, disse.
Na Irlanda do Norte, lideranças republicanas, favoráveis a uma reunificação com a Irlanda também cogitaram a possibilidade de um plebiscito sobre independência.
Quais são os impactos para a economia britânica?
Assim como os outros países do bloco, o Reino Unido também faz contribuições financeiras à União Europeia. A quantia total arrecadada entre todos os países-membros é repartida de forma equitativa.
Um dos argumentos dos britânicos a favor da saída do bloco é de que o Reino Unido mais contribui com a UE do que recebe recursos. Isso porque os fundos pagos pelo Reino Unido para o orçamento europeu contribuem para financiar programas e projetos em todos os países da UE. O Reino Unido também tem projetos financiados por fundos estruturais e de investimento do bloco.
No entanto, a soma da contribuição britânica com a UE é maior do que os gastos do bloco com o Reino Unido. Segundo dados da própria União Europeia, em 2014 o Reino Unido contribuiu com € 11,3 milhões à UE, o que corresponde a 0,52% de seu rendimento nacional bruto. Em contrapartida, as despesas do bloco com o país foram de € 6,9 milhões, ou 0,32% do rendimento bruto.
O professor Otto Nogami, do MBA do Insper, aponta os prejuízos internos sofridos pelo Reino Unido graças a esse “desequilíbrio monetário”, com mais saída que entrada de dinheiro no país. “Isso acaba criando uma pressão inflacionária maior, domesticamente falando”, diz.
Mas Paulo Figueiredo, diretor de operações da FN Capital, aponta que os impactos econômicos para o Reino Unido vão além dessa diferença entre contribuição para a UE e investimentos recebidos. Segundo o especialista, a receita britânica deve cair sem a livre circulação de mercadorias e pessoas entre os países do bloco.
“O Reino Unido contribui mais do que se recebe, mas se isolando no bloco essa conta talvez não vá fechar. Será muito mais difícil se ter uma receita sem o livre trânsito de mercadorias e pessoas. Esse ganho que o Reino Unido tinha com a União Europeia vai cair muito.”
O professor do curso de Relações Internacionais da FAAP Marcus Vinicius de Freitas lembra, no entanto, que o desejo de reorganização da economia pode ser justamente o fator que motiva muitos britânicos a votarem pela saída do bloco. “Existem regras da União Europeia com relação ao sistema financeiro, bancário, administração das finanças públicas. O que os britânicos questionam é que o projeto da UE não é o que eles ambicionam, ” diz o especialista.
Qual é o impacto para o comércio exterior britânico e europeu?
A participação na União Europeia permite que os países comprem e vendam produtos e serviços entre si sem a aplicação de taxas e impostos dentro da área comum. O Reino Unido então passa a ter taxas diferentes no comércio exterior com os países europeus em relação às praticadas agora, podendo inclusive trocar de parceiros.
“Na UE, o que se formou foi uma união aduaneira, além de ser uma área de livre comércio e também de união tarifária em termos de comércio internacional”, explica Otto Nogami.
Paulo Figueiredo afirma que a saída do bloco pode prejudicar o comércio britânico, “pois ele deixa de contar com a livre circulação do bloco.
Já Nogami aponta que pode haver benefícios. Segundo o especialista, a entrada na UE “fez com que a Inglaterra, que era importadora de carne da Austrália, por exemplo, fosse obrigada a renunciar e passar a importar do continente. Isso são os acordos comerciais, se permite o livre comércio entre os integrantes em detrimento de outros países”, explica Nogami.
“Nesse sentido, com a saída, a Inglaterra pode ter condições comerciais melhores que com seus parceiros do continente europeu. Já para a União Europeia, acaba representando ônus”, diz o professor.
Qual será o impacto nas importações e exportações de outros países, incluindo o Brasil?
As negociações com países fora do bloco se tornam mais livres, como pontua Marcus Vinicius de Freitas.
“O Brasil se beneficiaria eventualmente, porque agora poderia exportar para os britânicos produtos primários que sofrem algum tipo de impedimento na entrada na União Europeia. A negociação passa a ser bilateral simples, com um único país”, diz Otto Nogami.
Já Paulo Figueiredo aponta que “o Brasil não vai se beneficiar tanto”. “A facilidade é um pouco maior, mas o Reino Unido não é um grande parceiro comercial do Brasil, não tem tanta influência.”
Em maio de 2016, o Brasil exportou US$ 256 milhões em produtos para o Reino Unido, o que equivale a 1,4% do total de exportações brasileiras no mês, segundo dados do Mistério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
Segundo a União Europeia, o Reino Unido exporta principalmente para os EUA, a Alemanha e os Países Baixos. Por sua vez, as suas importações vêm sobretudo da Alemanha, da China e dos EUA.
Quais são os impactos econômicos para o bloco
O professor Otto Nogami afirma que uma eventual saída do Reino Unido do bloco significa a extinção de uma das bases do tripé no qual está apoiada a União Europeia.
“Toda a estrutura da UE está baseada na Alemanha, França e Reino Unido. Na medida em que se tira um deles, a estrutura fica capenga. São as três economias mais fortes e representativas, e tirar uma delas pode desestabilizar a economia da União Europeia.
Todo o peso acaba recaindo sobre a Alemanha, porque hoje a França está totalmente desestabilizada. O que não se sabe é até que ponto a Alemanha teria condições de carregar todo o continente nas costas, economicamente falando.”
Quais Impactos para outros países, como o Brasil, se a União Europeia perder força
Paulo Figueiredo aponta que a principal incerteza após a decisão britânica é com relação ao posicionamento de outros países europeus.
“A grande questão é a incerteza que essa saída vai gerar e a brecha que abre. A gente já teve discursos na Holanda e na França de que também deve ter uma votação para permanecer ou não. E isso pode enfraquecer muito o bloco. Com possíveis saídas de outros países, talvez se tenha um movimento igual na Alemanha. Tudo isso traria um problema econômico, porque o bloco deixaria de existir.”
“Todas as alianças comerciais que os países da União Europeia têm com o resto do mundo teriam que ser refeitas. Isso traria uma complicação muito grande”, completa o especialista. “Se a gente começa a ver que o bloco perde força, aí sim vai trazer um impacto para o Brasil e outros países.”
Em 2015, o Brasil exportou US$ 33,9 bilhões em produtos para países da União Europeia, o que significa 17,7% do total de exportações do país no ano, segundo dados do MDIC.
Fonte: G1