Coronavírus: hospitais usam médicos e enfermeiros curados de covid-19 para procedimentos com maior risco de infecção

Cada vez mais pacientes que chegam a hospitais de São Paulo para se tratar da covid-19 têm sido atendidos por ao menos um profissional de saúde que já pegou a doença e se curou.

O fenômeno se explica pelo grande número de trabalhadores infectados na categoria e por procedimentos adotados por alguns hospitais, que têm recorrido prioritariamente a funcionários curados para atender pacientes com covid-19.

A BBC News Brasil entrevistou dois médicos e dois enfermeiros recém-recuperados que já voltaram ao trabalho. Dois deles tiveram quadros graves e foram internados na Unidade de Terapia Intensiva (leia os depoimentos abaixo).

Ainda não há estudos conclusivos sobre a possibilidade de reinfecção por covid-19, e todos os profissionais entrevistados disseram ter mantido ou até ampliado as medidas de proteção para não correr o risco de voltar a adoecer, além de preservar a saúde de colegas e pacientes.

Porém, especialistas apontam que, caso o novo coronavírus se comporte como outros vírus semelhantes, é provável que pacientes curados adquiram algum grau de imunidade e que, mesmo que voltem a se infectar, a doença tenda a se manifestar de forma mais branda.

Em 21 de abril, o repórter de ciência do jornal The New York Times Donald McNeil disse no podcast The Daily que vários médicos curados da covid-19 nos EUA têm sido destacados para realizar procedimentos com maior risco de infecção, como a entubação de pacientes.

Segundo os relatos dos médicos e enfermeiros brasileiros entrevistados, essas práticas também começam a ser adotadas por aqui.

Nos depoimentos a seguir, os profissionais de saúde falam sobre suas angústias no período de convalescença, o retorno às atividades e como ter enfrentado a doença os ajuda a lidar com pacientes.

João Francisco Rodrigues de Abreu Faria, médico do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) em Cubatão (SP)

Nós, do Samu, fazemos procedimentos no meio da rua, em vias de favela, no chão de casa, em banheiros vomitados. Estamos muito mais expostos e sujeitos a nos infectar pela covid.

Não temos ambientes controlados para realizar procedimentos invasivos, como uma entubação, em que há grande risco de contaminação por secreções. E sempre estamos cercados por uma mãe ou um filho gritando, então temos de ser rápidos.

Havia poucos casos confirmados aqui na região quando comecei a sentir dor de cabeça e uma tosse chata, que parecia alérgica.

Já estava afastado havia uns quinze dias da minha família por precaução. Estava morando sozinho, estressado, comendo mal, com saudade das minhas filhas, e fui piorando.

Quando o exame para covid deu positivo, estava bem fraco e desidratado. A tomografia mostrou entre 35 e 40% do meu pulmão comprometido, dos dois lados. Fui para a UTI em Santos e fiquei monitorizado.

É horrível para um médico estar no papel de paciente. Pensava nas minhas duas filhas pequenas. Chorei, e a enfermeira pegou na minha mão. Quero muito agradecer essa enfermeira, ela me ajudou muito.

Consegui me hidratar, melhorei e fui para o quarto. Tive alta e fiquei isolado por mais uns dias. Voltar para casa foi uma vitamina de amor e carinho. Estava sofrendo muito longe da minha família.

Fiquei feliz de retornar ao trabalho, porque a população precisa da gente, mas também estou triste, porque nosso motorista foi entubado e perdemos um técnico de gesso.

A maioria da nossa equipe se infectou. Nossos EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) demoraram para chegar, um teve de comprar para o outro.

Estamos priorizando quem já pegou e se curou da covid para atender casos suspeitos da doença. Quando há uma chamada, a pessoa que não se contaminou não vai na ambulância. Assim preservamos os colegas.

Ter passado pela doença me ajuda a identificar possíveis casos. Quando adoeci, transpirava muito, a ponto de ter de trocar o lençol à noite. Então pergunto no rádio se a pessoa está suando muito. Se sim, encaro como mais um sinal de covid.

Estamos no front de batalha. Amigos nossos estão adoecendo e morrendo. Convivemos com o receio de ter de entubar um amigo.

Acho que deveriam colocar profissionais de saúde mental para conversarem com a gente. Precisamos de acolhimento.

Marcos de Souza Evangelista, enfermeiro na UTI do Hospital São Paulo

Eu trabalho há 15 anos em UTI. Sempre cuidei de paciente com hepatite, HIV, tuberculose e outras doenças infecciosas.

Quando tive febre, foi um sinal de alerta. Não me lembro de ter tido febre nos últimos dez anos.

A doença avançou muito rápido. Em três dias, eu não levantava mais da cama. Tinha fadiga respiratória, dor muscular, náusea, diarreia, tudo o que você pode imaginar.

Minha esposa me levou ao hospital. Fiz a tomografia e vi que, em quatro dias desde o início dos sintomas, 25% do meu pulmão estava tomado por lesões da Covid.

Recebi oxigênio suplementar e fui encaminhado para a mesma UTI onde trabalho. Fiquei lá dois dias.

Meu maior medo era ser entubado e não ver mais familiares, minha esposa, meus filhos. Me senti muito fragilizado, porque você fica totalmente dependente de outra pessoa.

A beleza de trabalhar na área de saúde é isso: ver pessoas se expondo, colocando a vida em risco, para cuidar de alguém que não é nada dela.

O simples fato de pedir um copo d’água é motivo de gratidão. Ou se virar no leito. Tinha um sentimento de gratidão contínua pelos que cuidavam de mim. Isso é sobrenatural.

Melhorei e fui para a enfermaria, onde passei mais dois dias, e terminei a recuperação em casa.

Voltei ao trabalho um pouco assustado, com medo de me recontaminar. Esse medo me dá segurança, porque fico mais precavido, fico mais atento à paramentação e aos protocolos.

Ao mesmo tempo, foi uma satisfação retornar. Muitos colegas não conseguem ter a mesma sorte. Agradeci nominalmente todo mundo.

A UTI, que antes era generalista, virou hoje um grande setor isolado para casos de covid. Eu digo aos pacientes: “Fica tranquilo, vai dar tudo certo, eu estava deitado onde você está agora.”

Passar por essa experiência me deu outra visão do mundo. Sinto que me tornei uma pessoa melhor. Com a rotina, você fica cético, mas, quando você chega na situação em que eu cheguei e consegue se recuperar, dá esperança de que o sol volte a brilhar.

Apesar de não vermos luz no fim do túnel, não sabermos se vem por aí uma tempestade ou um vento, temos de confiar na humanidade e ter força para tocar o barco.

Natalia Balestra, enfermeira da UTI do Hospital Sírio Libanês

Contraí a covid de uma paciente sem sintomas claros, que passou três dias na minha unidade.

Tive dor de garganta e febre baixa. Não queria acreditar, porque tínhamos um número grande de pacientes graves na UTI. Tenho um cargo de liderança: organizo o ambiente, alinho processos, faço treinamentos.

Sentia que tinha deixado os colegas na mão e sentia culpa por estar doente, por abandonar o barco no meio do maremoto.

 Enfermeira Natalia Balestra diz que profissionais de saúde curados da Covid-19 têm sido prioritariamente alocados para atender casos da doença no Hospital Sírio Libanês

Enfermeira Natalia Balestra diz que profissionais de saúde curados da Covid-19 têm sido prioritariamente alocados para atender casos da doença no Hospital Sírio Libanês

Arquivo Pessoal/Natalia Balestra/ BBC NEWS BRASIL

Fiquei com medo de morrer, de piorar, precisar ser entubada e fazer hemodiálise. Diferentemente do enfermeiro que atende pacientes com sintomas mais leves, na UTI, nós só temos contato com a gravidade. Então sabia como a doença podia ser perigosa.

Foi muito difícil ficar isolada em casa. Na nossa cultura, valorizamos o contato físico, a proximidade. Quando adoecemos, recebemos visita e carinho. Com a covid, isso não pode acontecer.

A angústia do isolamento fez com que meus sintomas físicos piorassem. Tentei ler livros, ver filmes, pensar positivo, mas foram dias bem tristes e difíceis.

Felizmente, fui melhorando. Quando passei 72 horas sem nenhum sintoma, voltei ao trabalho.

Fizemos uma divisão no hospital para que pacientes com sintomas gripais não cruzem com pacientes de outras patologias. Esse movimento também tem ocorrido entre os profissionais de saúde.

Quem cuida de covid só cuida de covid. E quem retorna de licença pós-covid atende prioritariamente unidades de coronavírus.

Observei no meu serviço uma união muito forte de todas as categorias. E a empatia que sentimos pelos colegas é ainda maior. Todo mundo está pensando nas situações que trazem risco para o colega, pensando de maneira muito mais coletiva.

Tenho receio de falar aos pacientes que tive covid, não sei como vão receber. Mas, por ter tido a doença, lido de maneira mais atenciosa com pacientes e familiares.

Outro dia passei meia hora acolhendo e ouvindo as angústias da esposa de um paciente. Ela me pedia para ver de longe o marido.

Resolvi abrir uma exceção porque senti que aquilo faria toda a diferença para ela e para o marido. Ela me disse que nunca vai esquecer o que eu fiz, que ninguém nunca a tinha ouvido daquela maneira.

Fábio Grunspun Pitta, cardiologista do Hospital Israelita Albert Einstein e do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP)

Estávamos nos preparando para enfrentar o pico da doença na UTI do Einstein em abril. Já estava com alguns pacientes meus internados quando senti um mal-estar mais forte e um pouco de febre.

Colhi o exame, e deu positivo para covid-19. Você se sente impotente. Foi como ser escalado para jogar a Copa do Mundo, mas me machucar aos 10 minutos do primeiro tempo.

Fiquei 14 dias isolado do resto da minha família dentro de casa. Ficava num quarto com banheiro, e minha esposa me trazia um prato com comida, talheres e copo. Meus filhos vinham brincar na porta do quarto. O mais novo, de 2 anos, me chamava o tempo todo.

Nunca tinha tido uma doença que me afastou do trabalho. Você fica assustado. Tive colegas mais velhos que foram entubados. Outros mais jovens, que também estavam em casa, vinham piorando.

Curado da covid-19, cardiologista Fabio Grunspun Pitta diz ter experimentado na pele a dificuldade de descrever os sintomas da doença

Curado da covid-19, cardiologista Fabio Grunspun Pitta diz ter experimentado na pele a dificuldade de descrever os sintomas da doença

BBC NEWS BRASIL

A covid-19 é bem diferente de uma gripe. Em uma gripe, em dois ou três dias, você começa a melhorar.

Já na covid-19, a doença piora lá pelo sétimo ou oitavo dia. Fiquei apreensivo, mas, no décimo dia, melhorei para valer. E, quando completaram 14 dias, voltei a trabalhar.

É esquisito, você volta meio como um herói, “venci o covid”. Teve até uma festa no hospital para os recuperados.

Não sabemos se corremos o risco de nos reinfectar, então continuo com os mesmos cuidados de paramentação.

Por outro lado, teoricamente tenho imunidade e fico mais à vontade, mais seguro, sabendo que minha chance de morrer numa eventual reinfecção é menor.

Uso meu caso quando converso com pacientes. Eu percebi que uma das dificuldades de lidar com essa doença é saber caracterizá-la por sintomas. Você está bem, mas o coração bate acelerado, o fôlego fica curto.

Então eu digo: “Eu sei o que você está sentindo, a marca da doença é não conseguir explicar os sintomas”.

Nossa preocupação agora é que pacientes com outras patologias deixem de procurar os hospitais por terem medo de se infectar com covid. Percebemos uma diminuição no número de infartos, por exemplo.

Ou as pessoas que estão em casa estão tento hábitos mais saudáveis, ou estão segurando os sintomas e deixando de procurar o hospital.

Têm chegado até nós os casos mais graves, mas não os menos graves. Nosso temor é que, no segundo semestre, os pacientes cheguem mais doentes.

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