‘Era K’ acaba após 12 anos; veja o legado dos Kirchner na Argentina

A posse do novo presidente argentino Mauricio Macri e a saída de Cristina Kirchner da Casa Rosada nesta quinta-feira (10) marcam o fim de 12 anos do governo kirchnerista na Argentina, período chamado de “era K”. Cristina não participará da cerimônia – a decisão ocorreu após uma medida judicial que encerrou seu mandato antes de posse, à meia-noite de quarta-feira (9).
A administração Kirchner começou em 2003 com o mandato do falecido marido de Cristina, Néstor Kirchner, no desfecho de uma severa crise econômica. Prosseguiu com a eleição da então primeira-dama em 2007 — a primeira mulher eleita na Argentina — e sua reeleição em 2011.
Durante seu primeiro mandato, Cristina tinha Néstor como seu principal aliado e conselheiro. O ex-presidente morreu em outubro de 2010 vítima de um ataque cardíaco. Apesar das insistentes recomendações médicas para que reduzisse o nível de tensão após duas intervenções coronárias, Néstor Kirchner mantinha um intenso ritmo de vida e sempre negava os rumores sobre seu precário estado de saúde.
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Néstor e Cristina, que militaram juntos na ala juvenil do peronismo dos anos 1970 e se casaram em 1975, tinham um estilo confrontativo e decisivo de governar, com discurso considerado populista.
“Os Kirchners tinham um estilo populista e corporativista. Populista por se utilizar de grande apelo popular, seja por medidas demagógicas com grande simbolismo, como o culto a personalidades como [Juan Domingo] Perón e Eva Perón, seja por medidas de distribuição de renda que dão a impressão ao povo de estar enriquecendo”, diz ao G1 Alberto Pfeiffer, coordenador-adjunto do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP.
“Corporativista no sentido de separar a sociedade em ‘corporações’, grupos sociais ligados aos oficiais, como os sindicatos, e lidar com eles por meio da compra e venda de privilégios em troca de apoio político”, acrescenta.
Em seu governo, Néstor abraçou a bandeira nacional-desenvolvimentista quando chegou ao poder e defendia a autonomia em relação aos Estados Unidos, ao contrário do antecessor Carlos Menem.
Por sua vez, Cristina é criticada por autoritarismo e pela falta de diálogo em sua administração. “Cristina radicalizou muito o discurso. Ela era muito ruim de diálogo, e isso fica muito evidente depois que o Néstor morreu”, diz o cientista político e professor de relações internacionais da ESPM, Pedro Costa Junior. “Ela foi colecionando inimigos, enfrentou o principal grupo de comunicação [Clarín] e aprovou a Lei de Meios (veja mais abaixo). Seu estilo é combativo e agressivo, não é aquela política agregadora”, afirma.
Cristina defende os direitos sociais e dos trabalhadores conquistados nesse período como seu triunfo de governo. Em um vídeo de despedida publicado em sua conta no YouTube, com declarações de Néstor, cita feitos de sua administração com o slogan “Não foi magia”. “Sei que vocês são uma geração de argentinos que vão cuidar do que foi conquistado”, diz no vídeo.
Veja a seguir os principais acontecimentos da “era K” na Argentina:

Redução da dívida externa
Ao ser eleito em 2003, Néstor Kirchner manteve as restrições econômicas adotadas por Eduardo Duhalde para recuperar o país da recessão provocada pela inadimplência junto aos seus credores. A Argentina enfrentava sua pior crise. Em 2001, o país havia anunciado um calote em sua dívida pública, que era de cerca de US$ 100 bilhões. Em 2005 Néstor e seu ministro da Economia Roberto Lavagna negociaram com os credores e conseguiram reduzir a dívida argentina, retomando os pagamentos da dívida junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Em 2014, Cristina tentou negociar a dívida com os chamados com “fundos abutres”, grupo formado por uma minoria de credores que não aceitaram a renegociação após o calote de 2001 e exigiam o pagamento integral. Com isso, o país deu oficialmente um calote parcial e técnico, já que o dinheiro não pode ser repassado por uma decisão judicial. Veja mais sobre a crise sobre pagamentos das dívidas na Argentina.
Expansão econômica e recessão
Kirchner conseguiu recolocar a Argentina na rota do crescimento – já em 2003 o Produto Interno Bruto (PIB) registrou crescimento de 8,8%, revertendo uma queda de mais de 10% no ano anterior. “O que Néstor consegue fazer com grande êxito é restabelecer a solidificação da vida normal argentina, que antes passava por grandes saques e estava em estado de sítio, uma situação bem calamitosa”, diz Pedro Costa Junior, da ESPM.
Mais tarde, o aumento da demanda chinesa por commodities agrícolas beneficiou as exportações e possibilitou a distribuição de renda e diminuição da miséria e da pobreza. Ao analisar a “era K”, Alberto Pfeifer, da USP, relaciona o bom preço das commodities com a manutenção do poder. “Foram 12 anos de déficit democrático na prática, de enfraquecimento institucional, que só perduraram por 12 anos porque souberam usar expediente populista e tinham dinheiro em caixa pelo boom das commodities”, diz.
Nos últimos quatro anos, no entanto, a economia caiu em recessão com a diminuição do preço das commodities. A pobreza, o trabalho informal e a concentração de renda voltaram a aumentar, segundo comentaram os especialistas ouvidos pelo G1.
De acordo com as últimas previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia argentina fechará este ano com um crescimento quase nulo, de 0,4%, e encolherá 0,7% em 2016.
Inflação
Apesar do crescimento na economia, a inflação sempre fez parte do jogo econômico na “era K”. Altos gastos do governo em programas de assistência social, a impressão de dinheiro novo e uma moeda “doente” alimentaram uma das taxas de inflação mais elevadas do mundo. Em algumas ocasiões, críticos do governo, economistas independentes e organismos internacionais questionaram os dados divulgados oficialmente, indicando que eles seriam mais altos. Para 2015, por exemplo, o governo estima oficialmente que a inflação alcançará 14,4%, mas economistas independentes estimam quase o dobro, de 25%. Ao passo que a inflação aumenta, o peso perde poder.
Estatizações
Os Kirchner estatizaram empresas de serviços e nacionalizaram o setor de petróleo. Os correios e a empresa de água de Buenos Aires foram nacionalizadas primeiro por Néstor, enquanto Cristina tornou estatais importantes empresas como as Aerolineas Argentinas, a petrolífera YPF, assim como o sistema ferroviário e os de fundos de pensão.

Desgaste internacional
A dívida financeira com organizações privadas deixou a Argentina fora dos mercados internacionais, sem acesso a financiamentos e empréstimos, e levou a um desgaste nas relações com a América Latina e o mundo. A desconfiança de organismos internacionais em relação aos dados oficiais divulgados também prejudica a imagem do país no exterior. “Isso afetou o relacionamento da Argentina com os países vizinhos, a exceção da Venezuela”, diz o economista Otto Nogami, professor no Insper.
Regionalmente provocou desavenças com países como o Chile, ao cortar a exportação de petróleo, o Paraguai, ao apoiar sua saída do Mercosul, e o Uruguai, após o aumento da produção de uma fábrica de celulose na fronteira. A relação com o Brasil, outrora um grande parceiro comercial, também ficou afetada depois que o país aumentou a burocracia para a importação de produtos brasileiros. “A Argentina criou entraves para a entrada do produto brasileiro, mas como não tinha poupança privada suficiente para fazer investimentos, a economia degringolou”, afirma. Outra consequência, segundo o economista, é a queda da representatividade do Mercosul no mercado internacional.
Programas sociais
A “Asignación Universal por Hijo” entrou em vigor em 2009 por decreto de Cristina. Trata-se de uma ajuda financeira a pais desempregados ou que trabalham no setor informal. A ajuda é concedida mensalmente para cada filho menor de 18 anos. 20% do dinheiro só é entregue quando os pais apresentam certificados de comparecimento escolar e registros de vacinas. O subsídios às tarifas de serviços públicos, como o transporte e gás, também foram aplicados como uma política social.
Conflito com o setor rural
O governo de Cristina enfrentou grande crise em 2008, quando o setor agrário fez seguidas greves por conta da taxação que considerava excessiva sobre a exportação de soja. Na ocasião, Néstor Kirchner acusou os fazendeiros de complô e pediu que seus partidários boicotassem as companhias que participaram dos protestos. O acordo só veio um ano após o começo dos protestos, que colocaram grande parte dos ruralistas contra Cristina.

Casamento gay e identidade de gênero
A Argentina foi o primeiro país da América Latina e o décimo no mundo a autorizar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo no país, em julho de 2010. A lei iguala direitos como adoção, herança e benefícios sociais de casais heteros e homossexuais. Apesar de o projeto ter sido uma iniciativa do opositor socialismo, a decisão foi apoiada e comemorada por Cristina, que inclusive se evolveu em embates com a Igreja católica.
Em 2012 o país também aprovou lei que autoriza travestis e transexuais a escolher seu sexo no registro civil e retificar o nome de batismo e a foto de identidade. A lei define identidade de gênero como a “vivência interna e individual tal como cada pessoa a sente, que pode corresponder ou não ao sexo determinado no momento do nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo”.
Fim das leis de anistia
Durante o governo do presidente Raul Alfonsín (1983-1989) a Argentina aprovou leis que anistiavam agentes da ditadura, e o inquérito sobre crimes cometidos na Escola Superior da Marinha (Esma) foi arquivado. No entanto, em 2003 o Congresso aprovou o projeto de lei enviado por Néstor que derrubava essas leis de anistia. Oito anos depois, a Justiça condenou os primeiros militares por crimes contra a humanidade. Cerca de mil ex-membros das forças armadas foram acusados graças a esta mudança.
“Todas essas medidas dos direitos humanos – dos desaparecidos, dos presos políticos, da culpabilidades, dos atos cometidos na ditadura, que foram muito fortes – têm preocupação muito grande com a dívida ideológica da repressão”, diz Alberto Pfeifer, da USP.
Sistema de justiça
Em seu primeiro ano no poder, Néstor Kirchner promoveu uma renovação na Suprema Corte da Argentina e, por decreto, limitou a atribuição do Executivo para a escolha de novos integrantes. No entanto, os Kirchers são criticados por abrandar investigações que possam afetar o governo.
Neste ano, as divergências entre governo e poder judiciário se acirraram após a morte do promotor Alberto Nisman. O promotor apareceu morto em seu apartamento em janeiro, um dia antes de apresentar ao Congresso Nacional suas alegações de que Cristina teria tentado acobertar os envolvidos no ataque contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em 1994 em Buenos Aires. A investigação de sua morte ainda está em andamento. Entenda o caso em que trabalhava promotor achado morto na Argentina.
Desavenças com o grupo Clarín
Começaram a partir das greves do setor agropecuário, quando o jornal “Clarín” fez uma cobertura do tema que não agradou os Kirchner. O casal também considerou que a cobertura do jornal nas eleições legislativas de 2009, quando o kirchnerismo não obteve maioria, contribuiu para a sua derrota. As desavenças se acirraram com as discussões e a aprovação da Lei dos Meios, que limitou as licenças de mídias nos país. Cristina defendeu a lei para acabar com a concentração das empresas de informação no país.

Fonte: G1

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