‘EUA podem desligar a internet de qualquer pais’, diz comitê brasileiro

A visita da presidente Dilma Rousseff aos Estados Unidos, nesta semana, teve como um de seus objetivos virar a página do mal estar criado nas relações bilaterais pelas denúncias de que a Agência de Segurança Nacional americana (NSA) teria espionando figuras do alto escalão do governo brasileiro.
Foram tais denúncias, feitas pelo ex-funcionário da NSA, Edward Snowden, que levaram Dilma a cancelar uma visita oficial ao país em 2013. Dois anos depois, ainda é impossível ter garantias de que esse tipo de espionagem não possa voltar a ocorrer, segundo Hartmut Glaser, secretário-executivo do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), entidade que administra a distribuição de endereços eletrônicos e zela pelo bom funcionamento da rede no país.
Segundo Glaser, porém, um dos resultados positivos do caso foi dar ao Brasil protagonismo em uma área que tende a ganhar importância nos próximos anos: a busca pela formulação de um sistema de governança internacional da internet.
O secretário-executivo do CGI diz que, em parte pressionados pelo escândalo da NSA, os Estados Unidos concordaram em abrir mão da tutela que, desde os anos 90, exerciam sobre a chamada Corporação da Internet para Designação de Nomes e Números (ICANN), entidade que administra questões técnicas fundamentais ligadas a internet, como a distribuição de domínios.
Por que isso é importante? Segundo Glaser, o problema é que hoje, tecnicamente, os Estados Unidos podem “desligar a internet” de qualquer país.
Na terça-feira (30), essa transição foi um dos temas discutidos em São Paulo na iniciativa conhecida como NetMundial, encontro que contou com a presença do presidente da ICANN, Fadi Chehadé, e com o Ministro de Administração do Ciberespaço da China, Lu Wei. Confira abaixo a entrevista concedida a BBC Brasil pelo secretário-executivo do CGI durante a reunião:
BBC Brasil: Dois anos após o escândalo da NSA, em que avançamos no que diz respeito às garantias contra esse tipo de espionagem?
Glaser: É muito difícil responder isso de forma direta. Acho que, para começar, nunca foi provado que o problema denunciado pelo Snowden estava ligado a internet. Pode ser que a espionagem tenha ocorrido via telefônica, por celular. Na abertura de nosso evento da NetMundial, o ministro chinês (Lu Wei) lembrou que em tudo (o que diz respeito a rede) há um lado positivo e um negativo. Temos cada vez mais usuários na internet – o que é bom. Mas isso de fato também aumenta o risco de existência de hackers e de uma invasão indesejada.
BBC Brasil: Mas então não há como limitar a espionagem ou a exposição de alguns dados na rede?
Glaser: Você nunca vai ter uma estrada que não tem acidente. Ou melhor… na realidade, é muito fácil acabar com todos os acidentes da (Via) Dutra: basta fechar a Dutra. Mas isso é aceitável? Não. O mesmo ocorre com a internet. Há alguns anos teve um juiz que mandou ‘desligar’ o YouTube (no Brasil). O que aconteceu: em vez de resolver um problema, criou milhares de outros. Precisamos tomar cuidado com os extremos. A internet é uma ferramenta essencial, muito útil, mas deve ser usada com critério. Não é culpada de nada.
BBC Brasil: Como avançamos?
Glaser: Um passo importante é treinar os usuários a lidar com essa nova realidade. Muita gente acaba expondo os seus dados e a sua intimidade nas mídias sociais, por exemplo. Na minha época, algumas meninas mantinham diários escondidos. Hoje, os jovens revelam tudo no Facebook. Isso é parte de uma revolução, uma expressão de uma nova sociedade que está surgindo. Não sou contra mídias sociais, mas é preciso tomar cuidado com informações pessoais. Até com o telefone é preciso cuidado. Não dá para entregar a sua vida de bandeja. Milhares de empresas, quando contratam alguém hoje, fazem a varredura na internet e redes sociais. Dá para saber se um candidato tem uma vida noturna agitada e etc. Então (proteger nossos dados e intimidade) não é algo que depende do CGI, da ICANN ou do governo, depende de todos nós.
BBC Brasil: O seu argumento faz sentido quando o tema são informações pessoais colocadas em mídias sociais. Mas o caso de e-mails confidenciais de chefes de Estado parece diferente, não?
Glaser: Não tenho acesso aos dados do governo brasileiro, mas, pelo que soube, na época (do escândalo da NSA) o software usado (nas correspondências oficiais) era um software comum, sem muita proteção. Algo que já recomendamos ao governo, e eles estão trabalhando nisso, é que deveria haver uma rede própria (para essa troca de e-mails entre autoridades), que não seja uma rede comercial. Houve a instalação de uma fibra ótica ligando todos os ministérios, mas cada um tem a sua autonomia, seu próprio orçamento, falta uma ação coletiva.
Houve um despertar para essa responsabilidade. Tanto a Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) quanto o pessoal da área militar, que também faz parte do governo, se preocuparam e estão trabalhando para ampliar a segurança. Não quero ficar mencionando nomes de empresas, fornecedores e softwares. Mas eu tomo alguns cuidados e meu computador nunca foi invadido. Pela natureza do que eu faço, pode ser que tenha gente que queira acompanhar minhas mensagens. O governo deveria ser o primeiro a se consultar com especialistas. Nesse sentido, também houve falhas do lado do governo.
BBC Brasil: A ICANN deveria deixar de estar sob tutela americana em alguns meses. O que isso significa?
Glaser: Em 1998, quando a internet passou da área militar para a acadêmica, a ICANN, uma ONG sem fins lucrativos, surgiu para administrar os nomes de domínio. Isso ocorreu justamente para que a rede pudesse sair das mãos do governo americano. Mas um cordão umbilical não foi cortado: o Departamento de Comércio ainda tem controle sobre as atividades (dessa ONG). Desde o início, havia a previsão de que essa relação deveria terminar. Em 98 e 99 se falava que em dois ou três anos já se acharia uma alternativa. Estamos em 2015 – e nada.
Depois das revelações de Snowden, a presidência brasileira foi envolvida (nesse debate). Em Nova York ela anunciou que iria atuar para chegar a um acordo sobre princípios globais da internet – quase que um código de ética. O CEO da ICANN conversou com a presidente e o primeiro encontro da NetMundial foi organizado em abril de 2014 para debater o tema.
Os Estados Unidos se apavoraram com esse movimento. O Snowden fez um baita estrago. Envergonhou os americanos, que costumavam levantar a bandeira do respeito à privacidade e dados pessoais. Até então, os Estados Unidos eram os grandes heróis da internet. Os ruins eram sempre os outros, os hackers da China, os russos.
Em fevereiro de 2014, os americanos finalmente anunciaram que estava na hora de deixar a ICANN e permitir uma governança global (da internet). Agora, eu faço parte de um grupo de 30 pessoas que está estudando a melhor forma de fazer essa transição. Há uma série de pré-requisitos. Um deles é que a nova governança da rede deve ser multisetorial. Além de governo, precisa incluir empresas, acadêmicos e ONGs. Nós, brasileiros, já fomos acusados de querer assumir a internet por realizarmos a NEtMundial. Isso nunca passou pela nossa cabeça.
BBC Brasil: Por que interessa quem está no controle da ICANN?
Glaser: A internet é como uma árvore. No topo estão alguns computadores em que estão registrados os chamados top level domains – o que está a direita do nome de domínio. No caso do Brasil é o .br (ponto br), no da França o .fr, no da Alemanha .de. Esse código está em 13 computadores e o computador principal está nos Estados Unidos. Então, se por algum motivo eles desligarem o .br (ponto br) desse computador, todos os domínios do Brasil deixam de existir. Na prática isso quer dizer que hoje o poder de desligar a internet está nas mãos de um país e as pessoas questionam isso. Nos computadores do CGI, tenho 3,7 milhões de domínios do Brasil. As minhas salas são controladas. Sei quem entra, quem sai. Há um sistema de identificação com impressão digital. Mas se eu fosse mal intencionado poderia entrar e desligar seu domínio ou seu provedor.
BBC Brasil: O que o senhor está dizendo, então, é que, tecnicamente, hoje os Estados Unidos poderiam desligar a internet da China ou do Brasil?
Glaser: Poderiam. Por isso países com a China e a Rússia sempre fizeram certa oposição aos Estados Unidos e quiseram participar (de um novo sistema de governança da internet). Na realidade, no ano passado os chineses aderiram a esse modelo setorial. Eles estavam querendo sair e criar uma internet própria, o que fragmentaria a rede. Em um encontro em Buenos Aires na semana passada, a Índia também aderiu a uma internet para todos trabalharem juntos. Hoje a grande expectativa é em torno da Rússia. Mas estamos convergindo para uma solução: uma internet, um protocolo, uma forma de comunicação que precisam ter um gerenciamento global representativo.
BBC Brasil: Seria como uma espécie de ONU da internet?
Glaser: Não é uma ONU porque os membros não são só Estados ou governos. Há essa composição multisetorial, com todos os setores da sociedade representados. Pode até ser que a ICANN mantenha seu papel, mas seria preciso mudar seu estatuto, sua forma de eleição e representação. Teríamos de cortar esse cordão umbilical com os Estados Unidos e dar autonomia para a entidade. Provavelmente ela vai precisar de um diretor da Índia, um da China e um do Brasil. Hoje você tem cinco ou seis americanos, cinco ou seis europeus – dois terços na mão do mundo desenvolvido. E África, Ásia e América Latina ficam de fora. Temos um latino-americano em um board de vinte e uma pessoas. É muito pouco.
BBC Brasil: Qual o prazo para a transição?
Glaser: O contrato da ICANN com o governo americano vai até setembro e havia a expectativa de que a transição poderia ocorrer neste momento, mas vimos que não será tão fácil. Já se fala em um adiamento de seis meses – para março. Possivelmente, também poderia haver outro adiamento para junho ou julho. Há muitos detalhes e minúcias para serem resolvidos. Não vamos atropelar esse processo.
BBC Brasil: Essa entidade global não precisaria ter princípios e valores definidos para cuidar da ‘governança da internet’? Ao incluir países acusados de censura na rede, como China e Rússia, que tipo de desafios pode ter de enfrentar?
Glaser: Essa entidade não vai ser a polícia da internet. Não vai zelar pelo conteúdo. É muito mais uma entidade técnica. O CGI no Brasil não avalia conteúdo. Somos quase que uma junta comercial. Se você quer uma vida na internet, abre um registro conosco. Como você usa isso? Deve seguir as leis do país, a Constituição. Se a Justiça chega para mim e diz: eu quero saber quem é o dono desse IP, esse endereço da internet, respondemos. Mas não somos censura, não temos filtro.
BBC Brasil: Algumas pessoas acham que estão imunes à lei na internet?
Glaser: O Google por exemplo tem publicado imagens de casais no topo de prédios ou na praia em momentos de intimidade (as imagens são captadas para o Google Maps). De certa forma isso é invasão de privacidade, mas intimidade se faz em casa, certo? A tecnologia criou uma nova realidade e as pessoas têm de se conformar com algumas coisas e aprender a lidar com isso. Precisamos nos acostumar a essa vida nova. Além disso, incitação a bagunça, nazismo, racismo, terrorismo, tudo isso já está proibido pela lei. A internet é só mais uma mídia, o que você não publicaria em um artigo de jornal não pode publicar na internet.

Fonte: G1

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