Ex-segurança de líder norte-coreano conta que comeu ratos

Morador de uma pobre vila rural na fronteira entre a Coreia do Norte e a China, Lee Young-guk tinha apenas 17 anos quando viu sua vida mudar drasticamente.

Em 1978, ele foi intimado a integrar o contingente de guarda-costas daquele que viria a se tornar o líder norte-coreano entre 1994 e 2011: Kim Jong-il, filho de Kim Il-sung (comandante do país desde a sua fundação) e pai do atual líder, Kim Jong-un.

“Eles me escolheram, e eu não podia dizer não. Aquilo representava uma honra para a minha família”, conta Lee, hoje aos 55 anos, à BBC Brasil durante a Cúpula para os Direitos Humanos e Democracia, realizada pela ONG UN Watch em Genebra, na Suíça, à qual ele falou sobre as atrocidades cometidas pelo regime norte-coreano.

Há 17 anos exilado na Coreia do Sul, Lee vivenciou os extremos da sociedade norte-coreana: de homem de confiança do governo, caiu em desgraça e, condenado por traição, acabou enviado a um campo de trabalhos forçados, onde teve de comer “ratos, cobras” e até “excrementos de animais”.

“Só me dei conta como a população da Coreia do Norte vivia quando deixei de ser guarda-costas. Vi o sofrimento das pessoas, que elas morriam de fome. Precisava ver aquele mundo que eu desconhecia”, lembra.

Recrutamento
O recrutamento dos guarda-costas da família do líder norte-coreano levava cerca de um ano e era extremamente criterioso, diz Lee.

Além de checar a condição física e a saúde dos adolescentes, os agentes do governo vasculhavam o histórico de seus parentes em busca de alguma mancha ou suspeita quanto à lealdade ao regime.

Após ser escolhido, Lee passou por um extenso treinamento físico, psicológico e ideológico. Depois, enfrentou mais um ano de preparação específica para ser um guarda-costas oficial.

“Durante as sessões de treinamento, os exercícios físicos eram intensos: natação, artes marciais e manuseio de armas de fogo”, descreve.

Mas o que mais lhe chamou a atenção foi a sessão de treinamento ideológico. “Tivemos lições sobre a vida da família e de Kim Jong-il. Ele queria se mostrar ainda mais poderoso que seu pai: era retratado como um deus, uma figura sagrada e intangível. Fomos submetidos, realmente, a uma lavagem cerebral.”

Em evento de ONG em Genebra, Lee falou sobre violações no regime norte-coreano

Extravagância e luxo

Em 1980, Lee estava enfim pronto para atuar na proteção da família e, especialmente, de Kim Jong-il, então com 39 anos.

Na época, lembra, eram cerca de 500 guarda-costas.

Foram onze anos servindo a família do então futuro líder, nos quais Lee presenciou diariamente as extravagâncias e o luxo de sua vida privada.

Ele conheceu de perto, por exemplo, a paixão do chefe pela caça e seu fetiche por armas, caviar importado e limousines.

O jovem do interior na época pensava que, com tamanha suntuosidade no topo do poder, a vida do norte-coreano comum certamente havia melhorado desde os tempos de sua infância pobre.

“A família possui um quarto do país e usa esse território como área de lazer e para férias. Enquanto isso, a população sofre de desnutrição e pobreza. Não apenas os cidadãos comuns, mas até mesmo oficiais do alto comando não sabiam a verdade por trás da família, desse abuso de dinheiro.”

Lee deixou de trabalhar como guarda-costas quando seu irmão tornou-se motorista de Kim Jong-il.

Pelas regras do regime, apenas um único membro de cada família podia ser empregado por ele.

Foi quando Lee decidiu voltar à sua terra natal – e se deparou com a miséria, que persistia nos vilarejos do interior.

Nos anos 90, ele ocupava o posto de vice-diretor do departamento militar do comitê da cidade de Musan, na província de Hamgyong do Norte. Mas tudo mudou quando o ex-guarda-costas resolveu cruzar a fronteira com a China, em 1994.

Agentes norte-coreanos disfarçados de sul-coreanos o detiveram e ele acabou sentenciado a viver em um campo de trabalhos forçados.

Terror na prisão

Foram quatro anos e sete meses de 14 horas diárias de trabalho, fome, frio e falta de higiene em Yodok, um dos mais de dez campos mantidos pelo regime de Pyongyang.

“Tínhamos uma vida de animais, aquilo não era humano”, conta Lee. “Sempre que paro para lembrar dessa época, eu choro, fico muito deprimido.”

Aqueles considerados inimigos do regime norte-coreano são enviados para esses campos de trabalhos forçados sem nenhum processo judicial.

A duração do encarceramento varia – alguns podem ficar ali por toda a vida.

Lee conta que o trabalho era feito em minas de ouro, carvão e minério, no corte de madeira e na agricultura, algo que, segundo ele, não deve ter mudado.

“Para conseguir sobreviver, comíamos ratos ou cobras. Muitas vezes, tivemos que comer os excrementos dos animais, pois eles eram mais bem alimentados que nós”, diz.

Próximo ao acampamento havia um espaço para execuções por enforcamento ou fuzilamento daqueles que tentavam escapar ou eram flagrados roubando alimentos, por exemplo.

“Tínhamos de ver essas cenas a menos de 10 metros de distância”, lembra.

Lee estima que, só em seu setor, havia cerca de 2 mil prisioneiros. Muitos morriam por causa de doenças, da desnutrição e do frio, que chegava a -20°C no inverno.

O Comitê para os Direitos Humanos na Coreia do Norte, com sede em Washington, estima que o país mantenha hoje cerca de 120 mil prisioneiros nos campos de trabalhos forçados. E que 400 mil já morreram após torturas, de fome, doenças ou execuções.

Fuga

Apesar do controle rígido, Lee conseguiu escapar e desertar para a Coreia do Sul, juntando-se aos cerca de 25 mil norte-coreanos que hoje se exilaram no país vizinho.

Desde então, tornou-se defensor dos direitos humanos e passou a atuar no Centro de Informação NK, organização independente especializada em divulgar análises e denúncias sobre a Coreia do Norte.

Ele diz lamentar profundamente ter sido um dos guarda-costas do ex-líder norte-coreano.

“Nada mudou no país desde o período de Kim Il-sung. O único interesse deles é cuidar do próprio patrimônio. Não se preocupam com o bem-estar da sociedade.”

Para Lee, o atual líder Kim Jong-un deve ser julgado no Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia.

Em 2014, o Conselho de Direitos Humanos da ONU criou um painel de investigação sobre a Coreia do Norte e o sistema de repressão no país.

Um relatório da organização divulgado naquele ano mencionava crimes como tortura, escravidão, violência sexual, discriminação social e de gênero, repressão, perseguição política e execuções.

Um ano depois, a organização internacional Human Rights Watch exigiu que Kim Jong-un fosse julgado pelos abusos cometidos por seu regime no TPI.

Mas, apesar das recomendações internacionais, ainda é difícil que se inicie um processo de investigação nesse tribunal.

A questão é que, para isso, seria necessário o apoio do Conselho de Segurança da ONU, algo pouco provável já que a China, que é próxima à Coreia do Norte, tem poder de veto sobre as decisões do colegiado.

“Se Kim Jong-un for levado ao TPI, a população deixará de confiar neste governante e saberá a verdade. Só assim será possível melhorar a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte e libertar todos os prisioneiros políticos”, defende Lee.

Fonte: Terra

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